Gene Tierney, Agatha Christie e A Maldição do Espelho
Antes de começar a ler, saiba que este texto vai conter spoiler sobre o livro 'A Maldição do Espelho'. Se você ainda não leu ou viu a adaptação para o cinema e não quer descobrir o final agora, essa matéria não é para você, pelo menos por enquanto! Mas, se quiser, volta aqui depois que ler o livro pra saber sobre o assunto!
Lançado em 1962, o romance policial 'A Maldição do Espelho' (The Mirror Crack'd from Side to Side, no original) seria somente mais um dos livros de mistério escritos por Agatha Christie e protagonizados pela perspicaz Miss Marple, não fosse as semelhanças apresentadas no desfecho com um fato lamentável na vida da atriz Gene Tierney.Embora a assessoria da escritora tenha negado as alegações, afirmando serem apenas coincidência, a similaridade entre as duas histórias - a real e a fictícia - é tão explícita que fica quase impossível de acreditar em tal versão. Além do mais, a Rainha do Crime sempre falou abertamente sobre seu olhar aguçado para as notícias e até mesmo para fatos cotidianos ao seu redor, e sobre sua facilidade em imagina-los como um possível enredo mirabolante para suas tramas, como por exemplo o amplamente noticiado Rapto Lindbergh, utilizado como inspiração de um de seus mais emblemáticos trabalhos, 'Assassinato no Expresso Oriente', publicado originalmente em 1934.
O enredo do livro
A história tem início quando a famosa atriz Marina Gregg se muda para a pacata aldeia St. Mary Mead, na Inglaterra, junto com seu marido, Jason Rudd. Após reformarem a mansão 'Gossington Hall' (onde também é ambientado o livro 'Um Corpo na Biblioteca', publicado em 1942), o casal decide dar uma festa para alguns amigos, com um coquetel aberto para os moradores da pequena cidade. Durante a comemoração, uma das convidadas, Heather Badcock, uma mulher tola e estabanada que afirma ser uma grande fã de Marina, acaba passando mal subitamente e morrendo na frente dos presentes.
A perícia conclui que a causa da morte fora envenenamento e que Heather não era o verdadeiro alvo do assassino, e sim a Sra Gregg, já que por um acidente as duas haviam trocado os copos de suas bebidas.
Não demora muito para que a detetive amadora Miss Marple se meta no caso, contando com as informações valiosas de sua amiga, Sra. Bantry, antiga dona da mansão e que presenciou todo o acontecido de perto. Segundo seu relato, enquanto Heather Badcock tietava a estrela de cinema, os olhos desta pareciam congelados e aterrorizados, fixados em um ponto específico mas indeterminado. No decorrer da investigação, descobre-se que a vida glamourosa de Marina Gregg esconde um delicado estado psicológico, desencadeado pelo nascimento de um filho deficiente, como sequela da rubéola que a atriz contraiu durante a gestação.
O assassinato é desvendado ao final da trama por Miss Marple, que após pesquisar em jornais e revistas antigas sobre a vida da estrela, constata que a própria Marina é a criminosa. Seu 'olhar congelado' fora uma viagem no tempo ao escutar as palavras de Heather que, animada e estupidamente, contava que anos antes havia fugido de seu quarto de hotel para vê-la de perto durante uma viagem as Bermudas, mesmo estando de quarentena após ter contraído rubéola. Ao finalmente perceber o motivo pelo qual sua felicidade havia sido destruída, ela decide matar a mulher responsável por todo seu sofrimento.
A inspiração para a história
Gene Eliza Tierney iniciou sua carreira aos 19 anos no filme 'O Retorno de Frank James' (The Return of Frank James, 1940) ao lado de Henry Fonda, após ser descoberta por Darryl F. Zanuck, fundador da 20th Century Fox, que a considerava o rosto mais lindo da história do cinema. A bela jovem logo se destacou em sua nova profissão e emendou um trabalho após o outro, sendo uma das atrizes mais requisitadas da década de 40. Em sua vida pessoal as coisas também iam bem. Após um rápido namoro com o estilista Oleg Cassini, os dois se casaram escondidos, para desgosto de seu pai, que reprovava o rapaz. Em 1943, a atriz ficou grávida da primeira filha do casal.
Gene Tierney com o marido Oleg Cassini
Durante a gestação, ela aceitou o convite para participar do Hollywood Canteen, uma espécie de clube onde as maiores estrelas da época se apresentavam, dançavam e até serviam comida para os soldados que estavam alistados durante a Segunda Guerra Mundial. Organizado por Bette Davis e John Garfield, contou com a participação de diversos nomes do entretenimento, como Hedy Lamarr, Frank Sinatra, Linda Darnell, Joan Crawford, Rita Hayworth e Marlene Dietrich. Com os enjoos e o mal estar do início da gravidez, Gene Tierney compareceu apenas uma vez para dar sua colaboração à iniciativa. Pouco tempo depois, a atriz descobriu que havia contraído rubéola e a doença tinha causado sérios danos congênitos à sua filha, Antoinette Daria Cassini, nascida prematuramente em 15 de setembro do mesmo ano. Pesando pouco mais de um quilo, a criança necessitou de diversas transfusões de sangue, era surda, parcialmente cega e tinha uma deficiência mental grave. Em sua autobiografia, intitulada 'Self-Portrait', a estrela descreve que alguns anos depois do nascimento de Daria, encontrou uma jovem fã que lhe revelou que durante a guerra, quando estava alistada, fugiu de sua quarentena de rubéola unicamente para conhecer sua atriz preferida no Hollywood Canteen. E assim, despretensiosamente, ela soube como contraiu a doença que causara tanto sofrimento à sua família. Diferente da personagem de Agatha, ela apenas virou as costas e foi embora.
Bette Davis servindo um jovem soldado no Hollywood Canteen
No auge de sua carreira e com um contrato a cumprir, Gene se entregou ao trabalho e estrelou alguns de seus maiores sucessos durante os anos seguintes, aparecendo em filmes como 'Laura' (1944), 'O solar de Dragonwick' (Dragonwyck, 1946), 'O Fio da Navalha' (The Razor's Edge, 1946), 'O Fantasma Apaixonado' (The Ghost and Mrs. Muir, 1947), 'A Ladra' (Whirlpool, 1950), 'Sombras do Mal' (Night and the City, 1950) e 'Passos na Noite' (Where the Sidewalk Ends, 1950), além de receber uma indicação ao Oscar por sua brilhante atuação como a vilã Ellen em 'Amar Foi Minha Ruína' (Leave Her to Heaven, 1945).
A atriz em cena de 'Amar Foi Minha Ruína', sua única indicação ao Oscar
Paralelamente, após quatro anos sendo consultada pelos melhores especialistas da época, Daria foi internada na ELWYN, uma instituição especializada em deficiência intelectual, onde passaria a maior parte de sua vida, já que seu estado exigia constantes cuidados profissionais. Embora possa parecer uma atitude um pouco fria vista pela ótica dos dias de hoje, antigamente internações eram uma prática comum, especialmente quando relacionadas à saúde mental; Gene e Oleg Cassini se separaram em 1946, reatando o casamento algum tempo depois. Tiveram outra filha, Christina Cassini, nascida em 19 de novembro de 1948, embora o divórcio definitivo do casal tenha sido oficializado em março do mesmo ano. A atriz chegou a ter relacionamentos com o futuro presidente John Kennedy e com o Príncipe Ali Khan, que havia sido casado com Rita Hayworth.
Com a filha, em 1943
Embora sua carreira tenha se mantido sólida até então, em 1953 a atriz começou a dar sinais de seu desgaste mental, desistindo de seu papel na refilmagem de 'Terra de Paixão' (Red Dust, 1932), onde contracenaria com Clark Gable e Ava Gardner. Sua personagem no clássico 'Mogambo' (1953), acabou sendo interpretada por Grace Kelly. Seus problemas de concentração e suas falhas de memória ficaram ainda mais evidentes durante as gravações do filme 'Do Destino Ninguém Foge' (The Left Hand of God, 1955). Humphrey Bogart, por ter uma irmã que sofria de transtornos psiquiátricos, demonstrou muita sensibilidade e empatia com as dificuldades enfrentadas por sua colega de elenco no decorrer das filmagens, ajudando-a com suas falas e sugerindo que procurasse tratamento.
Com Grace Kelly e Clark Gable na pré-estreia de 'Mogambo', filme quase estrelado por ela
Foi internada em sanatórios em Nova York e Connecticut, onde foi submetida a cerca de 27 sessões de eletrochoque. O tratamento, que estimula convulsões através de choques elétricos, era uma considerada uma técnica inovadora na época, frequentemente utilizada em casos de depressão grave e esquizofrenia, dentre outras doenças. Embora a eletroconvulsoterapia (ECT) esteja sendo estudada até os dias de hoje, com muitos acreditando ser ainda a melhor opção disponível em casos mais críticos, na primeira metade do século XX, esta forma de tratamento era utilizada de maneira bem mais agressiva. A atriz chegou a declarar sobre sua internação: 'Foi a época mais degradante da minha vida. Eu me senti como um rato de laboratório'. Além dela, nomes como Carmen Miranda, Frances Farmer e Sylvia Plath são famosas pacientes que passaram por sessões de eletrochoque.
No final de 1957, Gene foi contida pela polícia após permanecer parada por 20 minutos no peitoril do apartamento de sua mãe em Manhattan, numa tentativa de suicídio, sendo novamente internada, desta vez na Clínica Menninger, em Topeka, Kansas. Recebeu alta no ano seguinte e começou a trabalhar em uma loja de departamentos anonimamente como forma de reabilitação, mas não demorou muito para ter reconhecida e ir parar nas páginas dos tabloides sensacionalistas.
Gene Tierney trabalhando em uma loja fotografada por Francis Miller
Ainda em 1958, conheceu o barão do petróleo W. Howard Lee, marido da também atriz Hedy Lamarr, de quem se divorciou oficialmente em 1960. Howard e Gene se casaram em julho deste mesmo ano; Recebeu um convite para estrelar a comédia 'Amantes em Férias' (Holiday for Lovers, 1959) porém acabou recusando por não se sentir completamente recuperada, retornando por um tempo à Clínica Menninger. O papel acabou sendo de Jane Wyman. Atuou no episódio 'Journey to a Wedding' da série 'General Electric Theater' mas sua volta às telonas aconteceu apenas no filme 'Tempestade Sobre Washington' (Advise & Consent, 1962), sendo novamente dirigida por Otto Preminger, repetindo a parceria de seu maior sucesso, 'Laura' (1944). Também apareceu nos longas 'Na Voragem das Paixões' (Toys in the Attic, 1963), 'Quatro Noites de Lua Cheia' (Four Nights of the Full Moon, 1963) e 'Em Busca do Prazer' (The Pleasure Seekers, 1964), aposentando-se de sua carreira no cinema. Seus últimos trabalhos foram o filme para a televisão 'Daughter of the Mind' (1969), ao lado de Ray Milland, e uma participação nas séries 'The F.B.I' (1965 - 1974), em 1969, e 'Escrúpulos' (Scruples, 1980).
Em seu casamento com W. Howard Lee, em 1960
Gene Tierney e W. Howard Lee permaneceram casados até a morte dele, em 1981. Os dois viveram de maneira tranquila, longe da mídia em Houston, Texas , e Delray Beach, Flórida. Ela chegou a engravidar novamente em 1960, se retirando da produção 'De Volta à Caldeira do Diabo' (Return to Peyton Place, 1961). A gestação foi interrompida por um aborto espontâneo. Sua autobografia 'Self-Portrait' foi publicada em 1979. Gene morreu apenas duas semanas antes de completar 71 anos, em 6 de novembro de 1991, em consequência de um enfisema pulmonar, causado por seus anos como fumante. A atriz aderiu ao vício em cigarro para engrossar sua voz após a estreia de seu primeiro filme em Hollywood, alegando que parecia uma Minnie Mouse furiosa toda vez que falava. Daria Cassini faleceu em 11 de setembro de 2010 e sua irmã, Christina, em 31 de março de 2015.
Abaixo uma entrevista com a atriz em 1985 (sem legenda em português):
Adaptação do livro para o cinema
Em 1980, o romance de Agatha Christie ganhou uma adaptação para o cinema repleta de nomes conhecidos pelo público. Ambientada em 1953, a trama do longa ganhou algumas mudanças como o nome da protagonista vivida por Elizabeth Taylor, que se tornou Marina Rudd. Além da estrela, o elenco foi composto por Rock Hudson, Kim Novak, Tony Curtis, Geraldine Chaplin e Angela Lansbury, que aos 55 anos, mesma idade de Hudson e Curtis, interpretou a idosa Miss Marple. O filme marcou o retorno de Liz Taylor às telas após uma pausa de 4 anos, período em que apareceu apenas na televisão. A atriz substituiu Natalie Wood, que havia sido primeira escolha dos produtores para o papel.
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